segunda-feira, 11 de agosto de 2014

Estou voltando com novo blog, novas estórias, novas receitas e novos sons. Aguardem!

sexta-feira, 10 de junho de 2011

Aos Amigos, porque é Sexta Feira




Não havia madrugada boêmia em Joinville, sem o lanche do Magrão Lanches, que ficava em frente a boate do Tênis [pausa para saudade deste tempo]. 

Em seus recintos confluíam bêbados de todas as classes sociais. Dava de tudo. Para nós, na época adolescentes cheio de energia, a última tentativa de um "approach", que raramente funcionava, pois a língua já era travada. Enfim. Disse isso, porque era na Sexta feira, que a vida ganhava cor, mais energia, mais risos, mais telefonemas (não havia celular ainda).


Entre brahmas e cubas, a "galera" ia se animando pro embate. Era uma guerra, mas era branca. Era interna. Era eu tentando desde sempre, seduzir o mundo e procurando um lugar pra ser absorvido. Eu tenho saudade. Você também têm. Como dizia Mário Quintana, o tempo não pára! Só a saudade é que faz as coisas pararem no tempo...

Me parece, vendo o dia de hoje, que o entardecer da sexta é o supremo momento da libertação, quando a última luz do poente se esconde por trás do biombo azul da Serra do Mar, que se demonstra a mim agora.


Basta raiar a aurora de uma sexta-feira e a sua exclusiva atmosfera começar a penetrar no ser humano a “comichão” do bem-viver, que se irradia pela pele e que repercute nos lábios sedentos, anunciando o primeiro "gole". Baco tinha razão em suas incursões etílicas. Existe um prazer ao redor do copo, ao redor dos amigos, ao redor do calor humano.


Bom, hoje é um dia pra se beber sem culpa, se assim posso inserir tal afirmação. É certo que os mais “descompromissados” começam bem cedo. Antes do meio-dia, já enforcam o serviço, suspendem as obrigações e estacionam em algum alambique amigo, na orla do mar ou no Mercado público. Pode notar também que [ritual sagrado], onde estiverem, há de ter também o tradicional “golinho” lançado ao chão, para dar de beber aos mestres que já se foram (a xepa dos santos).

Assim como há, na liturgia cristã, o momento certo de erguer o cálice, há na vida “paisana” o momento ideal para fazer a escolha da bebida certa. Era o que também dizia o poeta Vinicius, só que a propósito de mulher:

 - Bonitonas ou bonitinhas, todas têm a sua vez ao longo de 24 horas…

Bebida é igual. E bebida tem muito a ver com a hora e com o dia. É como roupa para a mulher[paro por aqui]. Cada "drink" deve ser servido no copo adequado – e com gelo de máquina, prontinho para ser fotografado para alguma revista colorida.

O gim-tônica, por exemplo. É bebida de verão. Mojito também. E só se deve tomá-lo antes do almoço, e um só, de preferência de frente para o mar, “aos sábados, domingos e feriados”.

Chope também tem hora e estação. É bebida para a primavera-verão. Um “estupidamente-gelado” não combina com o inverno, diante do horror que causaria ao “rito” o cidadão ter que usar luvas para segurar o copo. Num dá né?

Conhaque é bom pra se tomar no Inverno – de preferência com a lareira acesa, antes que nos enrosquemos com nossa “coberta de orelha”, naquele nunca "assaz" repetido exercício que gerou a humanidade. Dia desses escutei "dormir de motoquinha", nada haver com o post, mas eu curti.


Voltando, as bebidas brancas, como o marvada da cachaça, têm lá a sua vez – embora prefira os uísques, de bom caráter e índole (aquele âmbar ao som do chacoalhar do gelo). A vida corre melhor, parece...


E como hoje já é sexta, véspera da glória do sábado, quando o bar vira o lar, ergo um brinde aos filósofos e apóstolos de bar,  a todos estes seres iluminados, figuras míticas de butecos espalhados por aí, que sabem enxergar com extrema lucidez os caminhos da embriaguez.

E como diz o filósofo, vamos pedir a saideira que é pra manter o "desequilíbrio"…

quinta-feira, 26 de maio de 2011

Aos amigos, Tainha!

...“Sempre havia hospitalidade em todos os lugares.
Se recolhiam as pessoas, quando chegava a noite,
nos engenhos, nas casas das canoas.
Se recebia todo mundo que aparecia por lá.
 
Comida?
Sempre se dava um jeito.
Puxavam-se as redes, e ali muitos peixes.
 
Nos domingos os parentes se visitavam,
iam nas casas dos outros,
as mães vestiam as crianças e iam visitar fulano lá em cima.
Viajavam um quilômetro, dois quilômetros, a pé,
para fazer a visita ou porque estava doente,
ou porque houve casamento, ou porque alguém morreu.
Se nascia, também. Estavam sempre se comunicando.
As pessoas, ao meu ver, eram mais amigas.

(Franklin Cascaes 1908-1983).

 
Talvez Franklin, Talvez. Fico me perguntando por que a modernidade traz consigo certos distúrbios sociais e humanos em forma de herança para nossa sociedade. Sigo com minha opinião que a expansão do sistema capitalista, esse neoliberalismo como ideologia de massa, atrapalha a convivência entre seres humanos, e diminui o calor. Estes dias discutia isso, e escrevendo este post lembrei que foi abordado a questão das culturas antigas e da ideologia. Acho que nossos pais tinham mais ideologias do que temos hoje.

Bom, deixo isso para discussão, pois o principal é exaltar que sempre há tempo de reunir os amigos, compartilhar a companhia e porque não com um bom prato. Daí, me ocorreu a idéia de falar sobre a Tainha, este peixe que dificilmente comemos sozinho, já repararam?...eu não me lembro de tê-lo comprado pra comer só com meus pais ou sozinho... Sempre tem uma galera ao redor do peixe!!!

A Tainha é uma atração e, a pesca uma atração à parte (Sabiam que existem mais de 40 espécies?). A partir da segunda quinzena do mês de maio, placas são fixadas nas praias catarinense informando a proibição da prática do surf em virtude da chegada dos cardumes de tainha. Vinda da Lagoa dos Patos, no estado do Rio Grande do Sul, a tainha sai em busca de águas mais quentes para desovar. De acordo com os pescadores, o horário que a tainha chega à costa é por volta das 4 horas da manhã. É também neste horário que os chamados olheiros ou vigias sobem os costões da praia para observar a chegada e informar aos pescadores que aguardam na praia.
 
Os olheiros geralmente acenam e apontam com um pano o local exato do cardume que se caracteriza por uma grande mancha vermelha. Em média, sete homens aguardam na praia este sinal para colocarem as canoa no mar. Eles ainda esperam que o olheiro, através de apitos, informe a hora exata para iniciar a pesca. São três silvos, até o lançamento das redes. A rede é lançada ao mar e a canoa faz uma volta ao redor do cardume. Somente quando a canoa sai da água que é hora de puxar a rede.

É neste momento que toda ajuda é bem vinda. Pescadores, turistas, pessoas da comunidade ou passantes agarram um pedacinho da rede e em sincronia a puxam para a praia. Nesta modalidade de pesca, chamada artesanal, a rede é produzida pelos próprios pescadores e tem aproximadamente 600 metros. Depois de desenroscar as tainhas da rede, os chamados ajudantes são recompensados com um belo peixe. Pescadores dizem que é possível retirar em um só lance mais de 120 mil tainhas. Como sabemos histórias de pescadores são meio fantasiosas, mas arquivos dos jornais locais de Florianópolis, provam que no ano de 1984 mais de 180 toneladas de tainhas foram pescadas na praia dos Ingleses.

A temporada de pesca da tainha vai até o dia 15 de julho e quem visita Florianópolis nesta época tem o privilégio de observar e participar dessa pratica artesanal milenar e ainda voltar com muitas histórias de pescador para contar. É por lá que mora um grande amigo meu, e se der certo, este ano vou puxar a rede lá nas bandas do Santinho. Quem se habilita? Por enquanto elas ainda estão tímidas, mas tenho certeza que irão dar o ar da graça logo...no mar e na mesa. No blog http://www.tainhanarede.blogspot.com/ , tem atualizações sobre a temporada 2010 da pesca, além de entrevistas com os pescadores, cultura local, receitas e muita informação.

Na região norte de Santa Catarina, também há uma celebração sobre este período de fartura do peixe. A Festa da Tainha, que acontece no Balneário da Barra do Sul, está na sua 16º edição, sempre trazendo atrações musicais diversificadas, além da culinária da região, através de uma praça de alimentação e stands comerciais. Acho que dá pra achar uma tainha defumada por lá (essa iguaria é muito gostosa), então vale a pena conferir. A festa começa dia 22 de junho e vai até dia 26.
 
Esperando por elas, coloco aqui uma receita que fizemos ano passado lá em Canasvieiras, regado a um ensaio de rock n’ roll da melhor qualidade (o repertório pelo menos era, mas a banda criada naquele dia, ainda precisa ensaiar outras vezes...). Você vai precisar de 1 Tainha aberta, suco de 1 limão, sal, alho, manteiga sem sal. Com uma garrafa de vinho tinto aberto, todos os copos cheios, um brinde à vida, à amizade, prepare desta maneira: Abra a tainha rente à espinha dorsal, passe sal e um pouco de manteiga e leve para assar, sempre regando com um molho de suco de 1 limão, sal a gosto e um dente de alho amassado. Regue sempre. Seu copo também sempre cheio do néctar.
 
Um segredo: Para cada palmo da tainha aberta (meça do rabo até a cabeça), asse por 10 minutos (ou seja, uma tainha de 2 palmos deve ficar 20 minutos assando)
 
De acordo com a informação de meu grande amigo Dudu Mira, o Beto do Box 32, comenta que qualquer Merlot combina com a tainha. Mãos à obra na caça do bichinho e sucesso no preparo para a sua turma. Até!





segunda-feira, 16 de maio de 2011

Paella Marinera


Juntar as pessoas ao redor do fogo, tem sido algo milenar. Minhas experiências me atestam, que, quanto mais pessoas houver perto de mim, mais e melhor vou fazer. Foram 20 convidados ilustres nessa reunião e me orgulho do feito que segue. Antecipo o seguinte: Nada de divisão para ingredientes, modo de preparo, essas babaquices que constam das receitas clássicas. Não. Vou tentar imprimir meu "modus operandi" na íntegra, com a precisão que me é peculiar. (modéstia)
Quem me lê, sabe. Cozinhar é antes de tudo, um ritual. E o ritual começou no dia anterior, sexta à noite, no encontro com os ingredientes. A competente Tânia, da peixaria Oliani, me ajudou a selecionar cada ingrediente, dentro de uma discussão quase técnica, sobre sabores, métodos e texturas. 
Selecionei 2kgs de camarão com casca (casca é para o caldo); 15 camarões pistolas, 1kg de mariscos frescos; 1kg de lula em anéis; 1kg de mariscos com a casca; 1kg de polvo limpo; 1kg de Lagostins; 1kg de peixe em posta (Meca, Dourado, Garoupa, Cherne - o que tiver na sua banca de peixe).
Os temperos são sempre essenciais. Usei um maço de cheiro verde, uma cabeça de alho, 2 cebolas inteiras, 5 tomates maduros, 2 pimentões (amarelo e vermelho), o açafrão (essencial na visualização do prato), sal e pimenta a gosto, talos de salsão, 5 folhas de louro e 4 cravos (estes três últimos para o caldo).
 
Sábado de manhã, bem cedo, capturei todos os ingredientes na geladeira. Uma parada para uma carona e papos agradáveis no caminho; nosso destino era o Canto Grande.

Depois de todos os atores do prato estarem devidamente cortados e temperados [você fará isso usando limão, sal e pimenta à gosto e no olho], separei uma boa frigideira para esquentar o óleo.
Ah, a casca do camarão, foi passado na água corrente, e posta na panela, juntando as folhas de louro, os cravos e uma colher de sal e uma colher de sobremesa de pimenta. Foi pra fervura do caldo..
Atenção, é preciso que esteja estendido no seu ombro direito, um pano de prato. Não é superstição, nem mandinga, é prático mesmo e ajuda um bocado.
Comecei os trabalhos, certificando-me que havia um copo de chopp bem gelado ao meu lado. Sim, Cozinheiro também bebe. Primeiro fritei os cubos de peixe, até ficarem tenros e levemente brancos. Reservei.  Depois, os camarões pistolas (um alho vai bem junto aos camarões), que reservei para o Gran finale. O polvo e as lulas, durante 5 minutos. Reservei. Em seguida os mexilhões (vulgo marisco) e os camarões. Reservei todos num lugar só, assim já economizei tuperware, agua e sabão. Um dado importante. Música ajuda no desempenho. Um ipod/ipobre é boa pedida, ainda mais se estiver tocando um bom Led Zeppelin. O Álbum, Houses of the holy. A música, The Ocean.
Fritei, em óleo de oliva, os pimentões em tiras, durante uns 5 minutos. Eles são usados para a decoração, no final. Em paralelo, junte outra panela, com bastante água para cobrir os lagostins e, adicionando 3 colheres de sal, após a fervura, coloque os lagostins por 10 minutos. Retire-os então e reserve. Na mesma água, mergulhe os mexilhões com casca, por 5 minutos e retire. Eles também entram na reta final do prato. Au concour matters.
Acabou o chopp? - estende o braço e pede outro. O Cozinheiro manda. Aprendi isso. Tendo toda a primeira parte pronta, ou seja, organizada, é hora de tirar a paella (sim, é paella, o nome da panela), e colocar no fogo. Um gole expressivo do chopp e começei, sobre um óleo quente dispejando a cebola e o alho, inundando o ambiente com aquele cheiro ai-jesus, que o refogado proporciona...
10 minutos após o cuidado com o refogado, reduzido, coloquei um pouco do chopp na paella, adicionei os tomates (previamente limpos, sem sementes e a casca), na paella, mexendo por mais 10 minutos, até sentir o molho consistente. Adicionei então 1 ¹/² Kg de arroz parboilizado, num sentido de cruz (tipo rezando pra dar certo mesmo...) e espalhei uniformemente na paella, mexendo durante uns 3 minutos. Assim o arroz incorpora de forma rápida e eficiente os aromas do refogado. É hora de colocar o caldo. Cubri a paella com o caldo e deixe levantar a primeira fervura.
Nesse momento, você mesmo, se serve do chopp e socializa sem pressão com os convidados. É hora das piadinhas e dos pitacos. Sempre acontece. Quem cozinha, acostuma rápido.
Adicionei na panela agora, o açafrão (ponha duas colheres ao redor da paella, e mexa para distribuir). Verifiquei o aroma, a infusão de cheiros na panela e com olho clínico, acertei a homogeinidade do prato.
10 a 15 minutos depois, sentindo o arroz al dente e o tempero, mais que perfeito, é hora de voltar todos os frutos-do-mar na paella. Cada um foi temperado e fritado no seu habitat e, a resposta a isso tudo é uma seleção de sabores ímpar.
Mexa bem esta mistura, assim como eu fiz, e adicione ervilhas, vagens ou uma seleta de legumes ( aqueles pacotes que você encontra congelado no supermercado). Provei novamente o gosto - mais um gole de chopp -, e começei a contemplar o legado. Vai ficar bom, pensei. E ficou.
Assim que o caldo baixar, começe a finalizar o prato. Coloque os lagostins, dispostos ao longo da paella, juntamente com os camarões pistolas. Os mariscos com cascas vão bem de decoração ao longo da paella e no meio. Adicionei os pimentões, o cheiro verde, e alguns fios de óleo de oliva. Tenha uma pimenta da boa, na manga, para oferecer aos convidados. A minha apavorou.
Descansei eu por 5 minutos e o prato também. Ficou pronto. Não sobrou. Acho que aprovou.

sábado, 12 de março de 2011

O Raio do Piano


Faço agora algo arriscado: indicar um livro que ainda não terminei de ler - e que não é ficção e tampouco reportagem... Mas é que este fascinante Alucinações musicais - relatos sobre a música e o cérebro, do psiquiatra inglês Oliver Sacks (Companhia das Letras), impõe-se como exceção, estudo ao mesmo tempo clínico e apaixonado [espiritual?] de casos raríssimos da mente humana, descritos sob prosa primorosa para leitura de quem, como eu, não sabe discernir lobo temporal de lobo das montanhas...

São relatos fabulosos, surpreendentes - de nos mostrar as infinitas possibilidades do cérebro, com ou sem distúrbios previamente identificados, e de como a música pode estimulá-lo a estados emocionais até então insuspeitados, ou ainda evocar memórias antes dadas por perdidas.

Um exemplo notável, talvez o mais pertubador do livro: o sujeito adulto - muito pouco musical, definição própria - que, vítima de um raio, desenvolve compulsão por música de piano e se torna ele mesmo talentoso pianista.

 
Imperdível.

domingo, 27 de fevereiro de 2011

Luto não é para IMORTAIS.


Muito teria para escrever, porém, tão pouco ainda para dizer desta pessoa agradabílissima (tive a oportunidade de estar ao seu lado por 10 segundos).
Apenas 10 segundos, mas é assim, um tempo que pode mudar sua vida. Foi de um trato humano. Impressionante.
Durante alguns dias, deixarei uma série de homenagens ao escritor gaúcho Moacyr Scliar, morto hoje, dia 27 de fevereiro de 2011, será deixado aqui, para a posteridade[Imortal tal qual o escritor].

Por ora, e, por ele, apenas leio.


Os Projetos na Gaveta

Todos temos, em nossas gavetas, uma pasta com fragmentos de papel em que garatujamos algo que poderia ser a fórmula de nossa felicidade.

Tenho, numa gaveta, uma pasta de cartolina na qual escrevi Ideias. Seu conteúdo: folhas de papel, dos mais variados tamanhos e formatos, incluindo bloquinhos de anotações de hotel, convites para eventos e lançamentos de livros (um destes de minha autoria), folhetos de propaganda. Em todas essas folhas há algo rabiscado: as ideias. Ideias para contos, ideias para crônicas, ideias para livros até. Ideias em profusão, ideias que ao longo do tempo me iam ocorrendo e que eu, como tantos que escrevem, anotava para posteriormente desenvolvê-las. O que, na imensa maioria dos casos, nunca aconteceu. E isso por várias razões.Para começar, em muitos casos não consigo entender o que escrevi. Em parte isso resulta da famosa letra de médico, uma situação que, a propósito, não deixa de ser intrigante: de onde viria essa fama de clássica ilegibilidade? Da pressa com que os doutores, sempre lutando com a falta de tempo, escrevem? Ou seria uma curiosa manifestação de poder, tipo “decifra-me ou te devoro”, como dizia a esfinge na história de Édipo? Ou simples desleixo? Mistério, mas de qualquer maneira, uma questão à parte, mesmo porque, além desse componente, digamos, profissional, pesavam as circunstâncias em que as mensagens eram escritas: num carro sacolejante, por exemplo. Ou no meio da noite, os olhos fechando de sono.

Como se isso não bastasse, mesmo legíveis, as anotações revelam-se crípticas, misteriosas. Citando ao acaso: “A frase no sonho”, “Inventário das dores”, “Catastróficos e deslumbrados”, “Ator morre antecipando a morte”, “Se Deus se materializasse”, “História do cirurgião que inventa uma operação maravilhosa”, “Foi melhor assim”.

Vamos ficar só com estas duas últimas. “História do cirurgião que inventa uma operação maravilhosa”. Que operação seria essa? Que doença ela curava, que problema resolvia? E o que acontecia, então?
Perguntas intrigantes. Mas “Foi melhor assim” é, em matéria de enigma, ainda pior. “Foi melhor assim” – o quê? De que fala, essa frase? A quem se refere? Que história ela resume?

Todas estas anotações têm uma coisa em comum: são projetos que não decolaram. Por quê? Porque não tinham em si próprios a carga criativa suficiente para impô-los a seu próprio autor? Porque tornaram-se incompreensíveis?
 Estas coisas envolvem um grau de mistério que não é pequeno. E aludem a esse aspecto característico da condição humana: todos temos sonhos não realizados, objetivos não atingidos. Todos temos, em nossas gavetas, uma pasta com fragmentos de papel em que garatujamos apressadamente algo que certamente poderia ser a fórmula de nossa própria felicidade. Ah, se ao menos lembrássemos o que ali escrevemos. Se ao menos entendêssemos nossa própria letra.