domingo, 27 de fevereiro de 2011

Luto não é para IMORTAIS.


Muito teria para escrever, porém, tão pouco ainda para dizer desta pessoa agradabílissima (tive a oportunidade de estar ao seu lado por 10 segundos).
Apenas 10 segundos, mas é assim, um tempo que pode mudar sua vida. Foi de um trato humano. Impressionante.
Durante alguns dias, deixarei uma série de homenagens ao escritor gaúcho Moacyr Scliar, morto hoje, dia 27 de fevereiro de 2011, será deixado aqui, para a posteridade[Imortal tal qual o escritor].

Por ora, e, por ele, apenas leio.


Os Projetos na Gaveta

Todos temos, em nossas gavetas, uma pasta com fragmentos de papel em que garatujamos algo que poderia ser a fórmula de nossa felicidade.

Tenho, numa gaveta, uma pasta de cartolina na qual escrevi Ideias. Seu conteúdo: folhas de papel, dos mais variados tamanhos e formatos, incluindo bloquinhos de anotações de hotel, convites para eventos e lançamentos de livros (um destes de minha autoria), folhetos de propaganda. Em todas essas folhas há algo rabiscado: as ideias. Ideias para contos, ideias para crônicas, ideias para livros até. Ideias em profusão, ideias que ao longo do tempo me iam ocorrendo e que eu, como tantos que escrevem, anotava para posteriormente desenvolvê-las. O que, na imensa maioria dos casos, nunca aconteceu. E isso por várias razões.Para começar, em muitos casos não consigo entender o que escrevi. Em parte isso resulta da famosa letra de médico, uma situação que, a propósito, não deixa de ser intrigante: de onde viria essa fama de clássica ilegibilidade? Da pressa com que os doutores, sempre lutando com a falta de tempo, escrevem? Ou seria uma curiosa manifestação de poder, tipo “decifra-me ou te devoro”, como dizia a esfinge na história de Édipo? Ou simples desleixo? Mistério, mas de qualquer maneira, uma questão à parte, mesmo porque, além desse componente, digamos, profissional, pesavam as circunstâncias em que as mensagens eram escritas: num carro sacolejante, por exemplo. Ou no meio da noite, os olhos fechando de sono.

Como se isso não bastasse, mesmo legíveis, as anotações revelam-se crípticas, misteriosas. Citando ao acaso: “A frase no sonho”, “Inventário das dores”, “Catastróficos e deslumbrados”, “Ator morre antecipando a morte”, “Se Deus se materializasse”, “História do cirurgião que inventa uma operação maravilhosa”, “Foi melhor assim”.

Vamos ficar só com estas duas últimas. “História do cirurgião que inventa uma operação maravilhosa”. Que operação seria essa? Que doença ela curava, que problema resolvia? E o que acontecia, então?
Perguntas intrigantes. Mas “Foi melhor assim” é, em matéria de enigma, ainda pior. “Foi melhor assim” – o quê? De que fala, essa frase? A quem se refere? Que história ela resume?

Todas estas anotações têm uma coisa em comum: são projetos que não decolaram. Por quê? Porque não tinham em si próprios a carga criativa suficiente para impô-los a seu próprio autor? Porque tornaram-se incompreensíveis?
 Estas coisas envolvem um grau de mistério que não é pequeno. E aludem a esse aspecto característico da condição humana: todos temos sonhos não realizados, objetivos não atingidos. Todos temos, em nossas gavetas, uma pasta com fragmentos de papel em que garatujamos apressadamente algo que certamente poderia ser a fórmula de nossa própria felicidade. Ah, se ao menos lembrássemos o que ali escrevemos. Se ao menos entendêssemos nossa própria letra.

sábado, 26 de fevereiro de 2011

Smiths section





Ele continuará free-lancer

Elas têm sempre de absorver o pior.

William está calejado. Não mais se deslumbra com a beleza das moças, embora lhes dê a chance de surpreendê-lo. E elas surpreendem. Estão sempre aquém do pouco que ele espera. As morenas da praia fumam maconha; as da academia vêem BBB; as patricinhas trocam a academia pela maquiagem; as intelectualizadas trocam a academia pelos pêlos; as balzaquianas - logo elas - são terrivelmente inseguras; as bem-sucedidas perdem toda a molecagem; as médicas e engenheiras nada sabem para além de medicina e engenharia; as mais belas, quando muito, têm uma amiga mais simpática, inteligente e feia; e todas - numa doce ilusão de personalidade -, ainda acham que os homens têm de gostar delas como elas são.

William não bebe e não fuma. Ele gosta de Rock. É até difícil para os outros entenderem, como ele gosta de rock e não bebe. Acaba por contrariar a ordem idiota das coisas hoje em dia, de acordo com o qual só se pode transitar em determinado grupo uma vez que se absorvam dele também os vícios. E sua vida amorosa é o testemunho diário da incapacidade das morenas (loiras, ruivas, mulatas, albinas...) de contrariar a ordem bocó das coisas. De cada tribo, elas têm sempre de absorver o pior, diz ele.

Dá vontade, mas não: William pensou até em se trancar em casa e conversar apenas com as orelhas de seus livros. Dá vontade, mas não, ele não quer ser um daqueles chatos eruditos que “leram até ficarem burros”, como escreveu Schopenhauer. Se a solidão vivifica, o isolamento paralisa e esteriliza. E, sendo assim, por todas as tribos, ele está por ai; se mistura atrás de um morena que o transcenda.

Agora, no verão, ele é figurinha fácil nas festinhas pop da cidade. Onde houver espaço e matéria prima abundantes para as suas divagações, apesar do absurdo preço da garrafa d’água a 6 reais. Sua função é manter a sobriedade em meio à histeria desta sociedade deturpada e, ele leva sua função à frente, ao pé da letra. O único gargalo admissível para o álcool, ele diz, é o lábio suculento de uma morena transcendental. De preferência: de vestidinho amarelo e flores no cabelo. Só não sabe ele o que veio primeiro: se foi o estilo “vestida a vácuo”, ou se foi o vácuo mental produzido pelas Ladies Gaga da cultura pop. O certo é que o traje predominante nas baladinhas da cidade nunca lhe pareceu tão coerente.

Se as moças se vestem com um tantinho mais de naturalidade no universo diurno das baladas, isto se deve tão somente à inclemência do Sol - o melhor estilista do universo. Porque basta entrar no facebook de cada uma, ele diz, para se dar conta do tamanho do monstro que elas podem se tornar à noite. Amoldadas pela moda e pelas tribos para caber em roupas e perfis que, segundo Willian, só emagrece seus espíritos, elas hoje, cada vez mais cedo, colocam saltos, batons, cigarros, peitos e drogas na mesma sacola de supermercado, e saem cantando alegremente: “Rah, rah, ah, ah, ah/ Roma, roma, ma/ Gaga, ooh la la/ Want your bad romance”. Ufa, diz Willian. Estranho seria se elas quisessem um “good romance”.

E os amigos, por incrível que pareça, compreendem sua tragicomédia. Não o chamam de preconceituoso, nem rancoroso, muito menos arrogante. Acham, ao contrário, que Willian tem tudo para encontrar a morena transcendental nos blocos ou festinhas pop da cidade. Das duas, uma (ou duas): ela estará linda e radiante, nos braços de um maridão de dois neurônios; ou tão completa e graciosa quanto só a distância pode assegurar. Dizem que o destino de Willian é a paixão mortal pela mulher do próximo (do próximo homem, do próximo país ou do próximo planeta); Que a tribo de Willian tende a ser a dos titios, que vão descendo de geração em geração até levarem toco das filhas dos amigos. E eles já deixaram claro: nenhum quer Willian como genro.

Willian simplesmente ignora. Não discute sobre Carlotas e Lolitas, com quem não leu Machado nem Nabokov. No fundo, ele e todos desejam apenas uma “amável pessoa, que, não obstante as formalidades e o ar gracioso daqueles com quem se relaciona, conserva muita inteligência”. (Ok, ele admite: tem de ser gostosa). Há tempos, descobrira no livro do mundo que “a inteligência é afrodisíaco, enquanto a artificialidade causa repulsa”. Mais vale uma mulher de alma sempre aberta ao aprendizado, do que outra irremediavelmente viciada nas condutas e opiniões de sua tribo. Antes uma canária do que uma pavoa.

Transitar em diversos meios, lugares, épocas (e morenas), absorvendo o melhor de cada, sempre foi a sua filosofia. E, enquanto estas mulheres tiverem o sincero e provinciano desejo de se tornar um estereótipo, dizem as boas línguas, que ele se manterá free-lancer.